sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

PROFESSOR DEUSMAR JATOBÁ ESPÍNDOLA (1952 – 2016)

PROFESSOR DEUSMAR JATOBÁ ESPÍNDOLA (1952 – 2016)

Com profundo pesar compartilho com Vocês a consternadora notícia sobre a eternização do Professor Deusmar Jatobá Espíndola, vítima de câncer, em Campo Grande, neste fatídico 3 de fevereiro, a um mês de seu aniversário de 64 anos.

Ele era um dos raros corumbaenses inquietos, desassossegados, que perseguiam incansavelmente seus sonhos, ainda que solitariamente. Já casado, pai de filhos e com todas as dificuldades que a Vida de proletário impõe aos que ousam sair da mesmice, licenciou-se em Estudos Sociais em 1984 e em História em 1988 pela UFMS, no então Centro Universitário de Corumbá (CEUC), e bem mais tarde, depois de tentar em diversas universidades de Mato Grosso do Sul, tornou-se Mestre em História pela Universidade Salgado de Oliveira, no Rio de Janeiro, em 2012.

Ex-técnico em eletricidade e ex-ferroviário, Deusmar era um crítico sincero de nosso amigo comum Manoel do Carmo Vitório, então dirigente sindical da categoria ferroviária e ex-colega universitário no curso de licenciatura em Estudos Sociais. Passou a exercer o magistério em 1985 nas redes municipal e estadual de ensino e, em meados da primeira década do século XXI, realizou sua experiência como docente universitário, temporário, na UFMS. Da mesma forma, conhecendo as minhas convicções ideológicas, fazia questão de demarcar as nossas diferenças políticas, até porque ele se definia como um democrata cristão, fiel à sua formação salesiana.

Aliás, durante décadas ele foi, no teatro amador, o Cristo crucificado que comovera gerações de corumbaenses e ladarenses que assistiam à peça Paixão de Cristo, escrita, produzida, dirigida e encenada a quatro mãos com outro(a)s Amigo(a)s, nos idos de 1970, antes da divisão de Mato Grosso. Da mesma forma, foi pioneiro na produção dos "Debates Populares", em 1988, quando os radialistas João Luiz Gonzales e Andersen Navarro, sucessivamente, eram as estrelas da programação da imponente Rádio Clube de Corumbá,  sob a direção da falecida Doutora Laurita Anache.

Nós nos conhecemos no início da década de 1980, quando eu ainda estudava em Campo Grande, na FUCMT, e ousava dar meus primeiros passos no meio jornalístico. Foi numa de minhas vindas a Corumbá que o conheci ao lado de meu saudoso Pai, por conta de suas instigantes conversas -- é que ele se declarava um "curioso nato, amante da boa e produtiva conversa", como ficou registrado no perfil de sua página do portal "Café História" --, ao ver o senhor Mahoma Hossen Schabib falando com naturalidade vários idiomas, cercado de turistas mochileiros, ou absorto na leitura de pilhas de livros, revistas e jornais, também em diversas línguas.

Mas a nossa Amizade (dessas com letra maiúscula) se solidificou precisamente quando ele, produtor do então programa semanal "Debates Populares" da Rádio Clube de Corumbá, me "intimara" a participar (foi esse o verbo usado quando me convidou para ser um dos debatedores enquanto ele esteve como produtor e os mencionados radialistas se sucederam). E diferentemente da linha posteriormente adotada pelo Jornalista Armando de Amorim Anache, com a participação do Jornalista e Advogado José Carlos Cataldi (ex-radialista da Rádio Nacional, do Rio), o programa teve, também, edições memoráveis, como a que discutiu os rumos da Constituinte presidida pelo saudoso Deputado Ulysses Guimarães, ou a que debateu sobre a dívida externa brasileira, ou aquela que questionou os cinco anos para Sarney, ou a discussão sobre Parlamentarismo, ou a respeito da adoção da pena de morte no ordenamento jurídico brasileiro etc.

Nos últimos dez anos, raramente nos encontramos, por puro acaso. Mas tive a grata satisfação de recebê-lo em casa para lermos o seu anteprojeto de Mestrado sobre a Coluna Prestes (o exílio, por Cáceres, de seus integrantes na Bolívia e sua repatriação por Corumbá), com o qual queria ingressar no programa de uma universidade pública. Apesar da consistência e originalidade do projeto, não fora feliz nesse intento, tendo se decidido posteriormente pela universidade do Rio de Janeiro, e dessa vez com outra temática.

Nosso derradeiro encontro foi em Miranda, numa parada obrigatória para quem viaja em ônibus de carreira, quando ambos retornávamos de uma insólita experiência, depois de participarmos da primeira etapa de um processo seletivo realizado na capital, extremamente concorrido. Bastante consternado com seu desempenho naquela prova, revelou-me um lado até então desconhecido por mim: o do incansável guerreiro visivelmente esgotado, cético e que jogara a toalha. Menos de um mês depois, soube por sua companheira que se submetera a uma nova cirurgia, desta vez no pâncreas, já em vias de viajar para Campo Grande.

Deusmar é uma das mais eloquentes expressões da multifacética Corumbá de todos os povos, de todos os credos, de todas as culturas, de todos os tempos: determinado, conquistou seu lugar na história (em todas as acepções), mas, obviamente, como todo intelectual oriundo da classe trabalhadora brasileira, precisava fazer a "conversão" burguesa que, ainda que outrora pudesse ter desejado, as bizarras elites jamais lhe concederam. Sua personalidade, muitas vezes controversa e irreverente, e sobretudo sua cordialidade inesgotável, farão muita falta neste torrão cada vez mais dominado pela mediocridade totalitarista, fruto da abominável globalização contra a qual nossa geração se insurgiu assim que tomamos consciência de nossa cidadania -- e, como disse o grande Darcy Ribeiro, fomos derrotados, mas jamais gostaríamos de estar no lugar dos que nos venceram, "donos" de uma sociedade perversa e aviltante para a espécie humana e todo o planeta.

Até sempre, querido Amigo, e obrigado pelas inúmeras lições que generosa e sabiamente nos deu!


Ahmad Schabib Hany

sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

Mahatma Gandhi e a questão judaico-palestina

M. K. Gandhi
Harijan, 26 de novembro de 1938
Recebi muitas cartas solicitando a minha opinião sobre a questão judaico-palestina e sobre a perseguição aos judeus na Alemanha. Não é sem hesitação que ouso expor o meu ponto-de-vista.
Na Alemanha as minhas simpatias estão todas com os judeus. Eu os conheci intimamente na África do Sul. Alguns deles se tornaram grandes amigos. Através destes amigos aprendi muito sobre as perseguições que sofreram. Eles têm sido os "intocáveis" do cristianismo; há um paralelo entre eles, e os "intocáveis" dos hindus. Sanções religiosas foram invocadas nos dois casos para justificar o tratamento dispensado a eles. Afora as amizades, há a mais universal razão para a minha simpatia pelos judeus. No entanto, a minha simpatia não me cega para a necessidade de Justiça.
O pedido por um lar nacional para os judeus não me convence.
Por quê eles não fazem, como qualquer outro dos povos do planeta, que vivem no país onde nasceram e fizeram dele o seu lar?
A Palestina pertence aos palestinos, da mesma forma que a Inglaterra pertence aos ingleses, ou a França aos franceses.
É errado e desumano impor os judeus aos árabes. O que está acontecendo na Palestina não é justificável por nenhuma moralidade ou código de ética. Os mandatos não têm valor. Certamente, seria um crime contra a humanidade reduzir o orgulho árabe para que a Palestina fosse entregue aos judeus parcialmente ou totalmente como o lar nacional judaico.
O caminho mais nobre seria insistir num tratamento justo para os judeus em qualquer parte do mundo em que eles nascessem ou vivessem. Os judeus nascidos na França são franceses, da mesma forma que os cristãos nascidos na França são franceses.
Se os judeus não têm um lar senão a Palestina, eles apreciariam a idéia de serem forçados a deixar as outras partes do mundo onde estão assentados? Ou eles querem um lar duplo onde possam ficar à vontade?
Este pedido por um lar nacional oferece várias justificativas para a expulsão dos judeus da Alemanha. Mas a perseguição dos alemães aos judeus parece não ter paralelo na História. Os antigos tiranos nunca foram tão loucos quanto Hitler parece ser.
E ele está fazendo isso com zelo religioso. Ele está propondo uma nova religião de exclusivo e militante nacionalismo em nome do qual, qualquer atrocidade se transforma em um ato de humanidade a ser recompensado aqui e no futuro. Os crimes de um homem desorientado e intrépido, estão sendo observados sob o olhar da sua raça, com uma ferocidade inacreditável.
Se houver sempre uma guerra justificável em nome da humanidade, a guerra contra a Alemanha para prevenir a perseguição desumana contra uma raça inteira seria totalmente justificável. Mas eu não acredito em guerra nenhuma. A discussão sobre a conveniência ou inconveniência de uma guerra está, portanto, fora do meu horizonte. Mas se não pode haver guerra contra a Alemanha, mesmo por crimes que estão sendo cometidos contra os judeus, certamente não pode haver aliança com a Alemanha. Como pode haver aliança entre duas nações que clamam por justiça e democracia e uma se declara inimiga da outra? Ou a Inglaterra está se inclinando para uma ditadura armada, e o que isso significa?
A Alemanha está mostrando ao mundo como a violência pode ser eficientemente trabalhada quando não é dissimulada por nenhuma hipocrisia ou fraqueza mascarada de humanitarismo; está mostrando como é hediondo, terrível e assustador quando isso aparece às claras, sem disfarces. Os judeus podem resistir a esta organizada e desavergonhada perseguição? Existe uma maneira de preservar a sua auto-estima e não se sentirem indefesos, abandonados e infelizes? Eu acredito que sim. Ninguém que tenha fé em Deus precisa se sentir indefeso, ou infeliz. O Jeová dos judeus é um Deus mais pessoal que o Deus dos cristãos, muçulmanos ou hindus, embora realmente, em sua essência, Ele seja comum a todos. Mas como os judeus atribuem personalidade a Deus e acreditam que Ele regula cada ação deles, estes não se sentiriam desamparados.
Se eu fosse judeu e tivesse nascido na Alemanha e merecido a minha subsistência lá, eu reivindicaria a Alemanha como o meu lar, do mesmo modo que um "genuíno" alemão o faria, e desafiaria qualquer um a me jogar na masmorra; eu me recusaria a ser expulso ou a sofrer discriminação. E fazendo isso, não deveria esperar por outros judeus me seguindo em uma resistência civil, mas teria confiança que no final estariam compelidos a seguir o meu exemplo.
E agora uma palavra aos judeus na Palestina:
Não tenho dúvidas de que os judeus estão indo pelo caminho errado. A Palestina, na concepção bíblica, não é um tratado geográfico. Ela está em seus corações. Mas se eles devem olhar a Palestina pela geografia como sua pátria mãe, está errado aceitá-la sob a sombra do belicismo britânico. Um ato religioso não pode acontecer com a ajuda da baioneta ou da bomba. Eles poderiam estabelecer-se na Palestina somente pela boa vontade dos palestinos. Eles deveriam procurar convencer o coração palestino. O mesmo Deus que rege o coração árabe, rege o coração judeu. Só assim eles teriam a opinião mundial favorável às suas aspirações religiosas. Há centenas de caminhos para uma solução com os árabes, se descartarem a ajuda da baioneta britânica.
Como está acontecendo, os judeus são responsáveis e cúmplices com outros países, em arruinar um povo que não fez nada de errado com eles.
Eu não estou defendendo as reações dos palestinos. Eu desejaria que tivessem escolhido o caminho da não-violência a resistir ao que eles, corretamente, consideraram como invasão de seu país por estrangeiros. Porém, de acordo com os cânones aceitos de certo e errado, nada pode ser dito contra a resistência árabe face aos esmagadores acontecimentos.
Deixemos os judeus, que clamam serem os Escolhidos por Deus, provar o seu título escolhendo o caminho da não-violência para reclamar a sua posição na Terra. Todos os países são o lar deles, incluindo a Palestina, não por agressão mas por culto ao amor.
Um amigo judeu me mandou um livro chamado A contribuição judaica para a civilização, de Cecil Roth. O livro nos dá uma idéia do que os judeus fizeram para enriquecer a literatura, a arte, a música, o drama, a ciência, a medicina, a agricultura etc., no mundo. Determinada a vontade, os judeus podem se recusar a serem tratados como os párias do Ocidente, de serem desprezados ou tratados com condescendência.
Eles podiam chamar a atenção e o respeito do mundo por serem a criação escolhida de Deus, em vez de se afundarem naquela brutalidade sem limites. Eles podiam somar às suas várias contribuições, a contribuição da ação da não-violência.
In M.K.Gandhi, My Non-Violence
Editado por Sailesh K. Bandopadhaya
Navajivan Publishing House
Ahmedabad, 1960

Num dia histórico, Corumbá se uniu à indignação internacional para manifestar sua solidariedade às vítimas dos carniceiros de Gaza

No mesmo dia em que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi hipotecar seu apoio às reformas promovidas por seu colega boliviano, o presidente Evo Morales, na localidade fronteiriça de Arroyo Concepción (distante cinco quilômetros do perímetro urbano de Corumbá) – que, no fatídico mês de maio de 2008, fora palco da intolerância de uma bizarra (sic) juventude cruceñista com indisfarçável vocação nazi-fascista –, o coração do Pantanal se somou à corrente solidária internacional, ao som de Joan Baez, Ivan Lins, Mercedes Sosa, Milton Nascimento, Elis Regina, Ney Matogrosso, Clara Nunes, Geraldo Vandré, Beth Carvalho e Chico Buarque. A mesma indignação contra mais um massacre ao povo palestino, manifestada pelos dois mandatários horas antes no palanque montado à beira da futura rodovia Corumbá – Santa Cruz (em vias de ser concluída pelo governo boliviano, com o indispensável apoio do governo brasileiro), aproximadamente três centenas de cidadãos das mais diversas origens, classes sociais, etnias, profissões, credos e nacionalidades participaram irmanados na esperança de ver triunfar a justiça para assegurar a tão sonhada paz duradoura na região que considerada berço da humanidade.
Apesar do sol causticante e da temperatura beirando os quarenta graus, pouco a pouco a praça foi sendo tomada por pessoas anônimas, conhecidas e personalidades que atenderam ao convite e faziam questão de explicitar sua solidariedade às vítimas da prepotência que hoje atende pelo binômio Bush - Peres. A comerciária Fernanda Taques, sobrinha do incansável jornalista Luiz Taques (detentor de dois invejáveis prêmios no campo dos direitos humanos), foi das primeiras a chegar e fez questão de vestir uma camiseta de sua denominação religiosa, a Primeira Igreja Batista de Corumbá. Do alto de seus bem vividos setenta e cinco anos, o vendedor ambulante Raimundo Nonato dedicou sua tarde à prática da cidadania, explicando que, como filho de retirante nordestino chegado na década de 1950 ao então próspero entreposto comercial do Prata, não poderia se furtar a manifestar sua indignação contra o absurdo de ver uma nova versão do pequeno Davi contra o gigante Golias, num papel inversamente protagonizado pelos que, quando menino, eram mostrados como vítimas do nazismo que tomara conta de boa parte da Europa. Com essa mesma sabedoria e discrição, o Padre Pascoal Forin, vigário da Paróquia de São João Bosco e coordenador do Pacto Pela Cidadania e do Comitê de Corumbá e Ladário da Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida, deu sua generosa participação, durante o breve momento em que uma leve garoa refrescou os manifestantes como que a natureza também deixasse seu tributo àquela ação cidadã – uma bênção divina, nas sábias palavras do querido sacerdote salesiano oriundo do norte da Itália.
Militante do movimento negro e dirigente carnavalesco, Edimir Abelha Moraes, irmão do reconhecido jornalista Edson Moraes (protagonista de memoráveis reportagens-denúncia contra a tortura em plena ditadura), não só fez questão de ajudar na organização como arregimentou companheiros do movimento social, como dirigentes comunitários e membros de religiões de matriz africana. Por seu turno, o presidente do Centro Boliviano-Brasileiro Trinta de Março, Andrés Menacho, desdobrou-se entre a mobilização de seus conterrâneos para a recepção ao presidente Evo Morales e a distribuição de correspondência às autoridades de seu país para participar-lhes da mobilização em solidariedade às vítimas do massacre de Gaza. Sem qualquer constrangimento, para Menacho, a menção feita pelos dois presidentes ao drama do povo palestino tem a ver com o seu trabalho de beija-flor. Dirigente histórico do PT em Corumbá, o ativista cultural e filho de pais bolivianos Arturo Castedo Ardaya justificou a postura clara de seu partido em favor do povo palestino e contra todas as formas de opressão. Também descendente de boliviano, o professor e dirigente sindical Marco Antônio Monje dedicou sua visita à sua terra para ajudar na organização da manifestação e a organização junto aos meios de comunicação da capital do estado, deixando clara a posição de seu partido, o PSTU, que dedicou o programa nacional ao povo palestino – não sem cobrar dos governos latino-americanos posições como a dos presidentes Evo Morales e Hugo Chávez. Quanto ao PSOL, cujo dirigente local, Anísio Guilherme da Fonseca, sindicalista ferroviário e graduando em geografia, é da etnia guató – o povo canoeiro do Pantanal –, encarregou-se de levar a solidariedade no papel de quem já provar sua origem, como de seu povo, que passou décadas a fio para convencer a FUNAI nos tempos da ditadura para desmentir que se tratava de uma etnia extinta por decreto. Os legislativos de Corumbá e de Ladário se fizeram representar à altura, com pronunciamentos dignos de reconhecimento público. Coube ao recém-empossado prefeito de Ladário, professor José Antônio Assad e Faria, encerrar o ato público, de modo didático e esclarecedor: explicou o drama humano da população de Gaza ao comparar as dimensões de seu território às de seu município, observando que sua população é o dobro da população de Campo Grande, capital de Mato Grosso do Sul – além de contextualizar o valor da cultura árabe e suas generosas contribuições no campo das ciências, das artes, das letras e sobretudo da paz, como descendente de árabe que é. O prefeito Ruiter Cunha de Oliveira, de Corumbá, foi representado pelo secretário Carlos Porto, ligado aos movimentos populares, em cuja fala justificou sua ausência por haver acompanhado as comitivas presidenciais ao aeroporto.
Há que se observar que o comércio local deu uma prova inequívoca de solidariedade, tendo fechado as portas em respeito ao ato público, com a afixação de cartazes e faixas pretas em sinal de luto pelo milhar de mártires que, dia após dia, não pára de crescer. Desde a pioneira passeata em memória dos mártires de Sabra e Chatila (de 1982), em torno de 15 manifestações públicas já foram realizadas no contexto do genocídio palestino, libanês e iraquiano, mas é indiscutível o nível de engajamento tão diverso e eclético como o da passeata do dia 15 (ainda que outras já tenham mobilizado um número maior de participantes). E queridos Companheiros de solidariedade, durante esta mobilização, foram sendo lembrados – tais como o historiador Valmir Batista Corrêa (autor, como vereador na década de 1980, da lei municipal que instituiu o Dia Municipal de Solidariedade ao Povo Palestino, observado em 29 de novembro, a exemplo da resolução da ONU com mesmo objetivo), o internacionalista recifense Miguel Anacleto Júnior (fundador do IBASP e membro-correspondente do Comitê de Solidariedade ao Povo Palestino de Corumbá, fundado em 27 de novembro de 1987), o ex-dirigente sindical ferroviário Manoel do Carmo Vitório (o primeiro coordenador do Comitê de Solidariedade por diversos anos), a biblioteconomista e professora universitária Lena Mello (competente organizadora da Primeira Mostra da Cultura Árabe, que perdurou por longos quatro meses no interior da Biblioteca Estadual da Casa de Cultura de Corumbá, entre julho e novembro de 1987) e o sociólogo Lejeune Mirhan Xavier (contemporâneo de movimento estudantil, inclusive na mobilização para o Congresso de Reconstrução da UNE em 1979, em Salvador, o primeiro posterior à repressão do de Ibiúna, interior de São Paulo – cuja linguagem contundente, na época, por meio de uma carta enviada desde Campinas, provocou um mal-entendido entre alguns dirigentes estudantis sul-mato-grossenses, supostamente melindrados com risco iminente de delações e atos de provocação, afinal a aterradora sombra do Cabo Anselmo e outros do gênero ainda pairava na memória coletiva da juventude politizada de então).
Já foi dito, algum tempo atrás, que a dimensão da dignidade de um povo é aquilatada pelo seu nível de autodeterminação. O coração do Pantanal, pois, mais uma vez respondeu à altura de seu cosmopolitismo centenário. Sem risco de incorrer em qualquer leviandade, pôde-se constatar que na manifestação do dia 15 em Corumbá não faltou ninguém – respeitando e lamentando a ausência involuntária dos que não tiveram condições de participar “de corpo presente”, mas que estavam representados pelos participantes. Obviamente, não dá para não mencionar, ainda que brevemente, como reconhecimento público, o(a)s incansáveis militantes da causa palestina de todos os tempos em Corumbá: Omar Fares, Adnan Haymour, Nasser Safa Ahmad, Riad Ale Hamie, Said Mohamad Said, Nail Abdel, Nidal Mohamad, Murad Abdel, Monder Safa, Yahya Mohamad Omar, Antar Mohamad, Zacaria Yahya Omar, Ziad Ibrahim, Ale Hamie, Ahmad Saleh, Najeh Mustafá, Ahmad Hamie e Mohamad Garib (residentes em Corumbá); Nasser Rachid, Jadalah Safa, Rauhi Murra, Juma Rachid, Abla Issa, Yasser Rachid, Kaplan Hamdan, Taha Omar e Fátima Rachid (residentes em outras cidades); Mohamad Said, Soubhi Issa Ahmad, Mahoma Hossen Schabib e Luiz Khamis (falecidos).
Assim reza o poema-canção de Pablo Milanês (em versão para o português de Chico Buarque): “A história é um carro alegre, cheio de povo contente, que atropela indiferente aquele que tentar impedi-lo... O que brilha com luz própria ninguém o pode apagar, seu brilho pode alcançar a escuridão de outras coisas...”
Para concluir, a consigna do Comitê de Solidariedade ao Povo Palestino de Corumbá (adotada em 1987), com base numa obra exposta na Primeira Mostra da Cultura Árabe de Corumbá (atual como nunca), uma das palavras-de-ordem na passeata do dia 15: A paz mundial começa na Palestina!
Ahmad Schabib Hany

Pelo fim do massacre em Gaza!
A humanidade vem testemunhando com perplexidade a guerra de extermínio contra a população de Gaza (Palestina ocupada), diante da covarde omissão dos organismos internacionais, incondicionalmente ao lado dos poderosos interesses da indústria de armas e do petróleo e seus tentáculos pelo mundo.
O governo dos Estados Unidos e seus aliados fazem de conta que advertem o covarde governo de Israel, que usa as mais modernas armas militares contra uma população indefesa que sequer pode usar velhas espingardas. Em nome de uma cínica e bizarra segurança interna violam convenções internacionais e resoluções das Nações Unidas, sem qualquer sinal de retaliação do Conselho de Segurança – aliás, seu maior aliado desde a criação da ONU, em 1945 (tanto é que três anos depois dividiram a Palestina milenar e propiciaram condições políticas apenas para instalar o Estado de Israel, em detrimento dos direitos do povo palestino, condenado a viver como párias em sua própria terra). Por muito menos, o Iraque e o Líbano foram destruídos pelas descomunais tropas assassinas de George Bush, misto de Hitler e Pinochet a serviço da intolerância.
Em respeito aos mais elementares direitos humanos (nunca observados para a população palestina) e aos mais altos valores éticos construídos ao longo de milênios pela espécie humana, unimos nossa voz e nossa indignação pelo imediato cessar-fogo em toda a região e a instalação de um tribunal internacional para julgar por crime de lesa-humanidade os criminosos de guerra Shimon Peres, George W. Bush e demais aliados. Pelo respeito à vida e à autodeterminação dos povos, com soberania e dignidade. A paz mundial começa na Palestina!
Corumbá (MS), 15 de janeiro de 2009.
COMITÊ CORUMBÁ PELA PAZ (corumbapelapaz@gmail.com) – Integrado pelas seguintes entidades: Fórum Permanente de Entidades Não Governamentais de Corumbá e Ladário – FORUMCORLAD (forumcorlad@gmail.com), Pacto Pela Cidadania – Movimento Viva Corumbá (pactopelacidadania@gmail.com), Ação da Cidadania Contra a Fome, a Miséria e Pela Vida (acaocidadaniacorlad@gmail.com), Organização de Cidadania, Cultura e Ambiente – OCCA (occapantanal@gmail.com), Centro Brasileiro-Boliviano 30 de Março (cebolbras@gmail.com), Coordenação Nacional de Lutas – CONLUTAS (www.conlutas.org.br), Instituto de Mulheres Negras do Pantanal – IMNEGRAS (imnegras@gmail.com), Associação de Moradores do Bairro Universitário (asmorbaiun@gmail.com), Associação Comunitária de Cultura e Esporte de Corumbá (accescor@gmail.com) Sociedade Beneficente Muçulmana de Corumbá – SOBEMCO (sobemco@gmail.com), Liga Árabe-Brasileira de Corumbá (liga.arabe@gmail.com) e Sociedade Árabe-Palestino-Brasileira de Corumbá (soarpalbra@gmail.com).

¡Por el fin de la masacre en Gaza!
La humanidad atestigua perpleja a la guerra de exterminio contra la población de Gaza (Palestina ocupada), ante la cobarde omisión de los organismos internacionales, incondicionalmente al lado de los poderosos intereses de la industria de armamento y del petróleo con sus tentáculos por todo el mundo.
El gobierno de los Estados Unidos y sus aliados disimulan falsas advertencias al cobarde gobierno de Israel, que usa las más modernas armas militares contra una población indefensa que ni siquiera pode usar viejas escopetas. En nombre de una cínica y bizarra seguridad interna violan convenciones internacionales y resoluciones de las Naciones Unidas, sin cualquier señal de retaliación del Consejo de Seguridad – su mayor aliado desde la creación de la ONU, el 1945 (que tres anos después dividieron la Palestina milenaria y propiciaron condiciones políticas apenas para instalar al Estado de Israel, en perjuicio de los derechos del pueblo palestino, condenado a vivir como parias en su propia tierra). Por mucho menos, el Irak y el Líbano fueron destruidos por las descomunales tropas asesinas de George Bush, mezcla de Hitler y Pinochet al servicio de la intolerancia.
En respeto a los más elementales derechos humanos (jamás observados hacia el pueblo palestino) y a los más altos valores éticos construidos a lo largo de miles de años por la especie humana, unimos nuestra voz y nuestra indignación por el inmediato cese de fuego en toda la región y la instalación de un tribunal internacional para juzgar por crimen de lesa-humanidad a los criminales de guerra Shimon Peres, George Bush y demás aliados. Por el respeto a la vida y a la autodeterminación de los pueblos, con soberanía y dignidad. ¡La paz mundial comienza en Palestina!
Corumbá (Brasil), 15 de enero de 2009.
COMITÉ CORUMBÁ POR LA PAZ (corumbapelapaz@gmail.com) – Integrado por las siguientes entidades: Fórum Permanente de Entidades Não Governamentais de Corumbá e Ladário – FORUMCORLAD (forumcorlad@gmail.com), Pacto Pela Cidadania – Movimento Viva Corumbá (pactopelacidadania@gmail.com), Ação da Cidadania Contra a Fome, a Miséria e Pela Vida (acaocidadaniacorlad@gmail.com), Organização de Cidadania, Cultura e Ambiente – OCCA (occapantanal@gmail.com), Centro Brasileiro-Boliviano 30 de Março (cebolbras@gmail.com), Coordenação Nacional de Lutas – CONLUTAS (www.conlutas.org.br), Instituto de Mulheres Negras do Pantanal – IMNEGRAS (imnegras@gmail.com), Associação de Moradores do Bairro Universitário (asmorbaiun@gmail.com), Associação Comunitária de Cultura e Esporte de Corumbá (accescor@gmail.com) Sociedade Beneficente Muçulmana de Corumbá – SOBEMCO (sobemco@gmail.com), Liga Árabe-Brasileira de Corumbá (liga.arabe@gmail.com) e Sociedade Árabe-Palestino-Brasileira de Corumbá (soarpalbra@gmail.com).

domingo, 28 de dezembro de 2008

AOS 60 ANOS DA DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS

Este é um dia memorável. Sessenta anos atrás, precisamente no dia 10 de dezembro de 1948, a Assembléia-Geral das Nações Unidas proclamava a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Mais que um documento emanado três anos depois da grande tragédia que se abateu sobre a humanidade – a Segunda Guerra Mundial (triste momento da história que envergonha a espécie humana na face da Terra: Hiroshima, Nagasaki, Auschwitz, Deir Yassin etc.) –, trata-se de um pacto contra a barbárie, um brado pela Vida, uma declaração de amor pela humanidade, um conjunto de princípios éticos pela evolução da espécie humana, uma carta de compromisso com as futuras gerações.
É bem verdade que nestes 60 anos muitas tragédias iguais ou até piores foram cometidas com a participação direta dos governos das maiores potências militares e econômicas da história. Até parece que os poderosos e gananciosos não aprenderam a lição, nem com o martírio de milhões de seres humanos (em sua maioria inocentes e indefesos que tiveram sua Vida, seus sonhos e seus direitos cerceados impunemente)...
Não por acaso, no senso-comum disseminou-se o preconceito sobre os destemidos defensores destes princípios universais. Até bem pouco tempo, era comum atribuírem a eles “culpas” por supostos “prejuízos” contra o desenvolvimento, por hipotéticos “atos de sabotagem” contra a pátria, por delirantes “conspirações” contra a segurança nacional. Esse discurso anacrônico e descabido ainda ecoa, de modo velado, entre os saudosos da intolerância, dos facínoras travestidos de democratas da grande noite que se abateu por toda a nossa pobre América Latina...
Mas os valorosos praticantes dos princípios sagrados da grande fraternidade constituída pelos lutadores pelos Direitos Humanos em todo o mundo não se acovardaram. Pelo contrário, multiplicaram seus seguidores, a despeito da covarde ameaça que sempre existiu contra eles, e, como nós, aqui e agora, em todos os lugares do planeta, se encontram num grande congraçamento, homenageando seus protagonistas, dentro da diversidade de credos, filosofias, ideologias, concepções de vida, gênero, raça, etnia, opção sexual, consciência, comportamento...
As instituições parceiras neste modesto ato, mas de grande relevância para a afirmação da cidadania (a Subsecretaria de Ações de Cidadania de Corumbá e o Fórum Permanente de Entidades Não Governamentais de Corumbá e Ladário), ousaram tentar um momento de reconhecimento sincero, mesmo sabendo dos riscos de não agradar a todo(a)s, pois não são poucos os potenciais candidato(a)s a esta homenagem – não aqueles que querem se autoproclamar (um direito, que, aliás, lhes assiste), mas os que, no anonimato e sem qualquer interesse secundário, têm feito de sua Vida um constante ato de servir ao próximo de forma sincera, espontânea e sobretudo concreta.
Lamentamos, inclusive, não ter sido possível incluir a todo(a)s dentro destes 60 homenageado(a)s de hoje. Vários foram os fatores, mas o que mais sopesou, sem dúvida, foram os argumentos enviados pelos dirigentes de entidades na defesa deste ou daquele nome, além do fato de alguns dos nomes lembrados estarem diretamente envolvidos no processo de organização do evento.
Por outro lado, a razão maior desta iniciativa – de generosa inspiração do grande militante das causas maiores Arturo Castedo Ardaya – não é outra que reconhecer publicamente a conduta solidária e exemplar do(a)s homenageado(a)s para incentivar, motivar e reforçar a prática da fraternidade, da ética, da solidariedade e sobretudo da defesa intransigente dos maiores valores de uma sociedade que se pretende evoluída, democrática e libertária, por meio do exercício da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Enfim, tal como 60 anos atrás corajosos protagonistas (muitos deles anônimos) escreveram esta generosa página para a posteridade, ignorando os incrédulos e zombeteiros de plantão, hoje cidadãs e cidadãos aqui reunidos para celebrar a prática da civilidade, por meio de atos concretos de nosso(a)s homenageado(a)s, têm consciência do compromisso de renovar as generosas convicções de nossos antecessores, cujo legado maior é a Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Que nos próximos 60 anos os corumbaenses que então se encontrarem numa noite de valorização da espécie humana por meio do reconhecimento de seus contemporâneos que tiverem abraçado a luta por uma humanidade mais fraterna, solidária e generosa, consolidem os sagrados princípios de concórdia e paz entre os seres humanos e demais seres viventes sobre a face da Terra consignados na Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Ahmad Schabib Hany

domingo, 24 de junho de 2007

Mais que conservar o meio ambiente, trata-se de preservar o Estado de Direito

Schabib Hany (*)

Uma sociedade que se pretende democrática, baseada no princípio do convívio saudável entre a diversidade de interesses de seus inúmeros segmentos - muitas vezes antagônicos, mas nem por isso ilegítimos –, não pode abrir mão da estrutura jurídica do Estado de Direito, o qual, aliás, foi construído ao longo dos últimos séculos pelas sucessivas gerações que antecederam as contemporâneas.
Nesse sentido, a partir do Renascimento (processo histórico das sociedades ocidentais pelo qual se retomaram as significativas contribuições oriundas da Antigüidade Clássica, ao romper com o obscurantismo medieval), importantes pensadores do Ocidente resgataram o humanismo e seus valores universais – sobretudo o legado da convivência harmoniosa entre os contrários, pondo em xeque a intolerância feudal, que ainda teima em nortear os rumos da humanidade.
A despeito da expansão colonialista protagonizada pelas coroas portuguesa, espanhola, inglesa, francesa, holandesa e austro-húngara, é no auge do Iluminismo que se consolidam as idéias que dão as bases conceituais da Declaração Universal dos Direitos do Homem, em fins do século 18 (que trata dos direitos individuais, a primeira geração). E num processo evolutivo são acrescidas importantes contribuições, nos séculos 19 e 20 – quando são concebidos os direitos coletivos, de segunda geração –, que se transformam num marco histórico em 1948, quando a Organização das Nações Unidas (ONU) aprova, em sua Assembléia-Geral, a Carta dos Direitos Humanos – a qual ganha maior dimensão com a inclusão de novos conceitos relativos aos direitos dos povos e da diversidade biológica e cultural, compiladas na Carta da Terra, em 1992, durante a realização, no Rio de Janeiro, da Cúpula da Terra, mais conhecida como Eco 92, cujo documento final ficou traduzido na Agenda 21.
Mais que mero protocolo de intenções, a Agenda 21 é um conjunto de novos conceitos e ações recomendados a todos os países-membro da ONU, a qual, no dizer do sociólogo americano Ignacy Sachs, em seu livro Estratégias de transição para o século XXI: desenvolvimento e meio ambiente (Editora Studio Nobel, São Paulo, 1993), "não foi um fim em si mesma; em vez disso, deve ser encarada como o início de um longo processo a ser percorrido mediante esforços e batalhas dos atores do desenvolvimento". Cabe, portanto, aos respectivos governos nacionais, regionais e locais introduzir em suas políticas públicas novos parâmetros de desenvolvimento, levando em conta as cinco dimensões de sustentabilidade – social, econômica, ecológica, espacial e cultural.
No entanto, a partir da celebração do chamado Consenso de Washington, em 1989 – quando do início do desmoronamento do bloco soviético –, os sete países mais ricos do mundo capitalista decidiram desenvolver uma estratégia ousada na afirmação de sua hegemonia econômica, adotando o neoliberalismo em escala global – a chamada "globalização" –, as sociedades contemporâneas passaram a viver um dilema: a subordinação de sua estrutura jurídica às leis de mercado. Em outras palavras, na América Latina o Estado de Direito passou a ser corroído, de um lado, pelos cartéis e oligopólios transnacionais, e por outro, pelas quadrilhas do crime organizado, pois o recém-implantado regime democrático se revelou frágil perante as amplas camadas sociais nas garantias de direitos sociais e trabalhistas e no enfrentamento à expansão da miséria e do desemprego.
Assim, o ruidoso embate que tem como epicentro o projeto de implantação de indústria pesada no município de Corumbá (MS), no coração do Pantanal Mato-grossense, remete os cidadãos comprometidos com os reais interesses da sociedade a uma oportuna reflexão: detentor de uma extraordinária legislação ambiental, o Estado brasileiro pode transigir da legalidade em nome da geração de emprego e renda para uma população residente numa singular região do Planeta, cujos recursos naturais não renováveis têm um valor inestimável para toda a humanidade?
Qual o real custo-benefício sócio-ambiental dos projetos alardeados para a região, levando em consideração que o mercado impõe condições cada vez mais voláteis a toda iniciativa econômica, sujeita à própria sorte (a exemplo da crise que afeta a sojicultura, a pecuária e a avicultura, carros-chefe da economia do estado de Mato Grosso do Sul, vitimados pela especulação mercantil dos últimos meses)?
E a garantia de sustentabilidade desses megaprojetos, os quais envolvem elevados investimentos, em sua quase totalidade financiados por instituições públicas, como o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), ou por instituições financeiras multilaterais, como o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) ou o Banco Mundial (BIRD), dos quais o Estado brasileiro é membro e cujo aval é requerido nos casos de sediar projetos dessa magnitude?
Há de se observar também que, antes de se cair no discurso maniqueísta (do "bem" contra o "mal"), é preciso reunir dados jurídico-institucionais para compor o cenário local para a introdução de novos projetos de desenvolvimento, nos parâmetros do século 21, com ênfase às cinco dimensões do desenvolvimento sustentável, bem como a necessária observância ao Estatuto da Cidade, pelo qual toda cidade com mais de 50 mil habitantes é obrigada a construir o respectivo Plano Diretor do Município, além do que a administração estadual não pode deixar de realizar o Macrozoneamento Ecológico-econômico, nos termos da legislação pós-Agenda 21, como medidas preliminares para adoção de novos modelos de desenvolvimento.
Não é demais recordar que as três gerações dos Direitos Humanos (direitos individuais, sociais e econômicos e de solidariedade e meio ambiente) são complementares, embora apresentem, no cotidiano das sociedades hodiernas, aparentes conflitos entre os direitos individuais, coletivos e de solidariedade. Na realidade, a omissão do Estado, enquanto ente responsável pela aplicação estrita dos referidos direitos, induz os incautos a essa aparência, explorada de parte a parte pelos lados em conflito. Mais que a conservação da natureza, a preservação do Estado de Direito, construído nas últimas décadas com muito custo (inclusive com perda de vidas humanas) em toda a América Latina, implica na vigência do império da lei, sem o que a barbárie se instala no seio da sociedade, para o deleite das organizações criminosas que agem, inclusive, nas atividades políticas e econômicas, usando e abusando da fragilidade do tecido social, corroído por suas mazelas.
* É fundador e atual coordenador-executivo da Organização de Cidadania, Cultura e Ambiente (OCCA), entidade sócio-ambiental sediada no coração do Pantanal (Corumbá, MS), e membro da coordenação colegiada do Fórum Permanente de Entidades Não Governamentais de Corumbá e Ladário (FORUMCORLAD).